Foram 9 meses de uma espera ansiosa. E enfim, João chegou à casa, enchendo-a rapidamente de alegria. Era um bebê lindo: olhinhos redondinhos, pretos como jabuticaba, iguais aos do papai; cabelinhos finos, bochechas redondinhas e uma boquinha vermelha, que muito lembrava a da mamãe. Mamãe esta que amamentou João e cumpriu à risca todas as orientações do Pediatra. A mesma que também logo percebeu que havia algo diferente em seu bebê. Notava que ele não fazia muito questão de estar no colo; quando mamava, pouco a fitava, parecia demasiadamente distraído. Achou estranho e pensou "será que ele não gosta de mim?". Apesar disso seguiu cuidando muito bem de seu primogênito. Às vezes se chegava ao berço para checar se João estava respirando. E sim, ele estava, não só respirando, como aparentemente se divertindo com suas próprias mãozinhas ao ar. E os meses foram passando. João muito quieto, era considerado um bebê "ideal" pelos amigos, pois não dava um pingo de trabalho. Ficava sozinho no berço e só chorava raramente. A família comentava que ele era "sério", pois não costumava dar muita atenção àqueles conhecidos "cadê o bebê da vovó?" "brum brum" "bilú bilú".
O belo menino foi crescendo. E a cisma da mamãe também. Por mais que o Pediatra a acalmasse dizendo que eram "coisas de sua cabeça", ela sentia que havia uma falta de brilho nos olhinhos de jabuticaba de João. Ele começou a andar surpreendentemente rápido e parecia ter um senso de independência marcante. Mas uma coisa chamava a atenção: ele adorava andar nas pontinhas dos pés. "Será que ele vai ser bailarino?", pensou a mamãe. Ela ficava um pouco frustrada porque João não parecia gostar dos seus brinquedos. Eram inúmeros, coloridos, lindos e caros. Mas ele gostava mesmo era de alinhar os esmaltes da sua caixa de unha ou de brincar com as chaves, chacoalhando-as o tempo todo. Os carrinhos? Ele os virava ao contrário e se divertia girando as rodinhas. João era definitivamente distraído, ela pensava. Por vezes, não respondia ao chamado do seu nome, motivo pelo qual foi parar no Otorrino, que descartou surdez. Realmente, ele era capaz de ouvir o papai abrindo um pirulito na cozinha e sair correndo! Quando João se encontrava com outras crianças, parecia não se interessar muito por elas. Se alguma se aproximava, ele logo largava o que estava brincando e ia para outro canto. Era estranho isso! Papai e mamãe se deram conta, lá pelos 2 anos de idade de João, que ele ainda não falava. Tinham sobrinhos e amigos com filhos da mesma idade e todos eles já estavam tagarelando à essa altura. Começaram então a ficar preocupados. Sempre que queria algo, usava as mãos dos pais. Se, por exemplo, quisesse água, pagava a mão de um deles e levava até o filtro, tudo isso sem trocar um olhar que fosse. Eles sentiam falta daquele velho "eu quero isso!" "eu quero aquilo!" "olha o avião papai", ou "olha o palhaço!". João também tinha algumas manias: sempre a mesma roupa, sempre a mesma comida, sempre o mesmo caminho. Que personalidade forte!", papai pensava, embora neste momento também já estivesse convencido de que algo se passava. Começou então uma longa jornada em busca de respostas. Os pais ouviram de tudo: "Isso é culpa de vocês, excesso de mimo!"; "Não tem nada de errado com ele, cada um tem sua hora de falar, o problema é a ansiedade de vocês!"; "Isso é falta de amor, a senhora pensou em abortá-lo alguma vez?"; "Isso é retardo mental, façam esses 30 exames!"; "Isso é AUTISMO".
E enfim, João era um lindo autista de olhos pretos como jabuticaba, bochecha redondinha e boquinha vermelha, com pais adoráveis e perfeitos.
Transtorno do Espcetro Autista, ou TEA, é uma desordem desenvolvimental que afeta o cérebro da criança e promove uma série de prejuízos na sua interação social, reciprocidade e linguagem, entre outros. Embora se pensasse que o TEA fosse um transtorno raro, estudos clínicos atuais tem demonstrado uma prevalência relativamente alta: cerca 1 em cada 70 crianças pode estar dentro do chamado Espectro Autista. Sabe-se que os meninos são mais afetados, numa razão de 1 menino para 4 meninas.
Quando falamos em Espectro Autista, nos referimos à crianças que apresentam, em maior ou menor grau, características relacionadas a duas importantes "áreas": 1) Comunicação 2) Sociabilidade e Comportamentos repetitivos e interesses restritos e específicos.
Comunicação
A linguagem diferencia o ser humano dos demais animais. Nos comunicamos não apenas através da fala, mas também através de vários outros gestos e sinais, além das chamadas expressões faciais.Crianças afetadas com o transtorno apresentam atraso na aquisição da linguagem, ou não chegam a adquirir. Aqueles que a desenvolvem (cerca de 50% dos casos), podem falar de maneira estranha, com alterações na entonação, e ou no conteúdo, como por exemplo usar falas decoradas de desenhos animados, filmes ou comerciais de TV. Para essas crianças pode haver uma grande dificuldade em se iniciar um diálogo ou conversa. Não é incomum elas utilizarem as mãos dos pais para sinalizar seus desejos ao invés de usar a fala. Além disso, crianças afetadas apresentam dificuldade em compreender todos os outros sinais sociais. Costumam se comunicar pouco ou nada através do olhar e muitas vezes, não respondem ao chamado do próprio nome, ainda que tenham a audição perfeita.
Sociabilidade
O ser humano ao longo da evolução se agrupou em comunidades, formando o que conhecemos hoje por sociedade. Estar em sociedade significa interagir o tempo todo com outras pessoas. Os portadores de TEA possuem uma tendência ao isolamento, preferem ficar sozinhas, interagem pouco com os demais indivíduos. Comumente se diz que "ficam em seus mundos", "fecham-se em si mesmos". Frequentemente essas crianças mantem-se alheias ao ambiente, se comportam como se os outros não existissem, são arredias ao contato físico ou tem dificuldade em retribuí-lo.
Comportamentos Repetitivos e Interesses Restritos e Específicos
Crianças do Espectro Autista podem apresentar comportamentos repetitivos, tais como movimentos de balançar o corpo em pêndulo, chacoalhar as mãos freneticamente quando nervosos ou excitados e andar nas pontas dos pés. É comum observar a preocupação delas com parte das coisas, às vezes irrelevantes, ao invés do todo. Gostam de objetos que não são necessariamente brinquedos e tem predileção por tudo que gira. Podem ter um apego inflexível às rotinas: caminhos, vestimentas, comidas, disposição dos objetos da casa, dificultando atividades novas. Muitas crianças do Espectro Autista apresentam interesses muito específicos e incomuns, como por exemplo dinossauros, bandeiras dos países, números de telefones.
Existem ainda outras características que podem ser listadas e que são comuns à essas crianças: sensibilidade alterada à alguns sons (levando as mãos aos ouvidos), falta de noção de perigo, agitação e hiperatividade, resistência aumentada para dor (muitas vezes não procurando consolo ao se machucarem), risos e choros imotivados, agressividade (para consigo mesmo e com outros), dificuldade de brincar de "faz de conta" e de se se colocar no lugar do outro. Até o presente momento, não se sabe qual a causa específica do transtorno. Trata-se de uma desordem multifatorial, onde existem fatores genéticos e ambientais associados à sua gênese. Infelizmente, até agora também não existe nenhum exame diagnóstico definitivo. Esse é feito pela avaliação da criança por um médico experiente que, através da história desenvolvimental e de exames de exclusão (de lesões cerebrais, surdez, erros inatos do metabolismo, doenças neurológicas), fecha o diagnóstico. O tratamento deve contar com uma Equipe Multiprofissional: Fonoaudiologia, Psicologia, Pedagogia, Terapia Ocupacional, Educação Física e Medicina, juntos, para o quanto antes estimular essa criança a interagir com o seu meio e melhorar o perfil de prejuízos. Em alguns casos pode ser necessária a utilização de medicações que, embora sintomáticos, implementam de forma notável a evolução da criança.